sexta-feira, 9 de novembro de 2007

O CONTO DA PENA

É meu primeiro continho.


A pena queria escrever. Não sabia o que exatamente, mas queria. Dentro do tinteiro, sozinha, observa. Não estava sozinha, propriamente, pois ali era um escritório – escritório, lugar de escrever, es-cri-tó-rio, pensava. A sua frente, um pedaço de papel. Não podia ver papéis. Era uma obsessão.

De um salto, certo dia, alcançou o papel. Relação platônica finita. E deslizou sobre ele. E deu voltas. E sentiu a textura. E apertou-se contra. E o lambeu, desenhando longas e rebuscadas letras, ilegíveis, a esmo, como se fosse a primeira vez. Na verdade, não era, mas cada papel em branco fazia a pena perder o tino.
De repente, parou. Pulou no tinteiro, chupou longos goles, e voltou ao papel, que já não era branco, nem virgem. E isso aumentou-lhe a sede de escrita. E ali começou uma história, porque o pedaço de papel era só um sobre centenas, tal qual um livro, todo em branco – aliás, de branco, nada havia nele, porque, se a pena tivesse observado um pouco mais, pouco além da própria vontade, teria visto que o pedaço de papel era um misto de cores, ardia de desejo de ser tocado, rabiscado, amassado, xingado, louvado, folheado, usado. Porque papel em branco é como gente sem história: não é nada. E de há muito o papel olhava a pena...
Certa feita, depois de um outono, um inverno, uma primavera, um verão e outro outono, pena papelomaníaca satisfeita, papel exausto, mas repleto – só faltava acender um cigarro, mas era arriscado –, deram o processo por encerrado. Nunca se soube que história fora ali escrita, até porque, costurada na surdina, só interessava aos dois: ao papel e à autora do papel, a pena. Só se sabe que a pena, que até então não sabia o que escrever, e que, ao tocar o papel, acendera-se, desastrada, a princípio, considerou, ao final, aquela a melhor da obras. Saciou-se. Curou-se. Porque esvaziou-se. Agora, o papel... Este tomou gosto. Passou a querer outras penas. E fica no es-cri-tó-rio a observar cada novo tinteiro que chega para lançar sobre elas olhares lacivos-convidativos. Sugou tudo o que pôde da pena vazia. Encheu-se. Quer mais, o papel penomaníaco.

Nenhum comentário: