quinta-feira, 1 de maio de 2008

Eu queria ser mulherzinha


Eu fui criada para ser uma boa menina, mas me saí qualquer coisa diferente disso. Defeito de fabricação. Não fui uma boa menina e nem me tornei uma mulherzinha. Não sei arrumar minha casa. Laila veio ajeitar tudo enquanto eu estava fora e agora eu olho minha casa e não entendo como ela de repente se tornou tão.... feminina. Era para ser uma casa barroca, mas hoje eu cheguei e a casa é a casa de uma mulherzinha, que não sou eu...

A mulherzinha borda, faz combinações, e é tão boa em decorar quanto é de fazer biquinho: ela sabe fazer seu "sim" parecer "não" e seu "não" parecer "sim". A mulherzinha é charmosa. A mulherzinha usa robe floral e muitos vestidos. A mulherzinha tem tempo para tudo. Não que seja uma desocupada, mas ela sabe conciliar e transformar uma hora em mil dias. E sabe distribuir sorrisos e é sempre muito bem resolvida. A mulherzinha é amada.

Meus livros, agora arrumados na prateleira, sempre misturaram-se numa algazarra sem ordem alfabética. Eu não tenho tapetes em casa. Não sei me comportar num primeiro encontro a ponto de garantir um segundo. Tenho um mestrado que talvez eu trocasse por dois filhos lindos. Não uso pulseira nem tenho tatuagem de florzinha no pé. Consegui emagrecer quatro quilos, mas não uso minissaia. Os dias terríveis são apaziguados com incenso, reza e alprazolam. Sou claustrofóbica. A maquiagem dos meus olhos sempre borra após duas horas de uso. Mesmo à prova d'água.

Hoje eu sinto que não tenho virtude alguma, porque não sou mulherzinha. De nada adianta lecionar filosofia, ter pernas bonitas, dirigir, morar sozinha, ter publicação internacional. As mulherzinhas são amáveis, no sentido de que "são passíveis de serem amadas". E por isso são mais felizes que o resto de nós, sem ao menos terem que saber falar francês, inglês e espanhol com fluência. Elas aceitam o amor do jeito que ele lhe vem. E, lógico, o amor não chega para a mulherzinha de qualquer jeito: para ela, ele já chega pronto, nem dá trabalho, porque é perfeito como a unha-à-francesa que ela usa todo dia e que não descasca após o banho. A mulherzinha sempre sabe o que fazer.

Amanhã vou tomar café no centro, depois de resolver o imposto de renda atrasado (mulherzinhas declaram?). Talvez troque as almofadas. Pensei em comprar uma poltrona de leitura e um xale para jogar sobre ela. Hidratar o cabelo, fazer unha, sombrancelha. Amanhã também tenho que lembrar de esquecer que comparações não fazem sentido. As mulherzinhas são mais felizes, e pronto.

7 comentários:

Gabriela ♥ Braga disse...

Muito bom o texto. E quando li, parei pra pensar um pouquinho em cada linha do texto, e concordei com quase todas elas.
"As mulherzinhas são amáveis, no sentido de que são passíveis de serem amadas. E por isso são mais felizes que o resto de nós, sem ao menos terem que saber falar francês, inglês e espanhol com fluência. Elas aceitam o amor do jeito que ele lhe vem. E, lógico, o amor não chega para a mulherzinha de qualquer jeito: para ela, ele já chega pronto, nem dá trabalho, porque é perfeito como a unha-à-francesa que ela usa todo dia e que não descasca após o banho."
Nessa parte acho que não tenho nem uma vírgula pra tirar nem pôr.
Se é mesmo assim, não quero ser mulherzinha: não quero um amor pronto. ponto.

Daniel Damasceno disse...

A questão, no meu entendimento, se resume a dimensões: em um mundo reduzido, é mais difícil ter anseios, questionamentos e inseguranças. Ao ampliar seus horizontes vc o faz por completo. Quando fazemos mestrado, temos publicações internacionais, ou qualquer outro tipo de atividade que abra a mente, nos questionamos muito mais. Quantas reflexões como essa uma mulherzinha deve fazer por década?

Bjo

Emerson Tinoco disse...

Como sempre, ótima sua crônica. Mas você se engana quando diz que a "as mulherzinhas" são felizes. Elas podem ser tão felizes ou infelizes como as "mulherzonas".
Felicidade é só um modo de enxergar a vida. Ninguém nunca está satisfeito com que tem. Tenho certeza que muitas "mulherzinhas felizes" gostariam de estar em seu lugar.

0 disse...

Filosofia à parte, deixo apenas um questionamento: é possível ao homem conquistar tudo o que almeja?!

Besos y un fuerte abrazo!!!
rs

Eusébio Dornellas

Anônimo disse...

Tenho de concordar com o Daniel. As pessoas vivem limitadas pelo espaço que constroem para si. Limtadas de uma maneira geral. Saber mais, conhecer mais, compreender mais, seja lá o que for também implica em se confundir mais, perguntar mais e querer mais. Não só as mulherzinhas tendem a ser mais felizes, mas todas as pessoinhas. Manter uma kitnet em ordem com certeza dá menos trabalho que uma casa de dois andares com quintal e garagem.

Rato (Splinter angorá) disse...

Engraçado... isso parece uma crise de identidade, mas não tão grave quanto o termo sugere... ah vida; a nicotina do hollywood não traz sucesso pra ninguém; se você fosse uma mulherzinha, eu ficaria muito triste; Jacqueline Deolindo passa longe de ser um bolo com receita pronta; "força sempre" ; "ouça tudo sempre no último volume" ; bjus para o Bento...

camilamello disse...

Que post triste. Qual a virtude de ser mulher e não ser mulherzinha? Não vejo nenhuma. Sou super mulherzinha e digo ainda que isso me faz muito feliz.