terça-feira, 27 de maio de 2008

No espaço público, a verdade não tem dono



Não existe democracia se não houver liberdade de imprensa. A frase mais parece clichê, e para muitos é, de fato, mas, se fizermos um exercício de pensar, talvez ela não nos pareça tão óbvia. A idéia de democracia surge entre os gregos, entre 400 e 300 anos antes de Cristo, tendo como principal característica o acesso de todos os homens livres no debate político. Na ágora, a praça pública grega, os cidadãos opinavam, discutiam, discursavam, avaliavam os argumentos colocados tendo como princípio, como ideal, uma meta nobre: o bem comum. A virtude, para o grego, consistia em manter as paixões, os apetites e os projetos pessoais subjugados a uma ética para a qual a sociedade, o grupo, era o mais importante. A ágora era o espaço público, o lugar de aperfeiçoamento do discurso, o lugar do aprendizado, da conciliação.


Na modernidade, com o projeto iluminista de uma democracia que colocasse de novo no cenário principal o homem, dotado de razão e poder de escolha, após séculos de esquecimento por regimes políticos absolutistas, voltou a figura do cidadão, que, não vivendo mais uma realidade que pudesse ser acessada diretamente, descobriu a função política do jornal, plataforma pela qual escoam e se entrecruzam as idéias. Se a democracia, diferentemente do projeto grego, é, agora, o modelo de um regime representativo, só é possível consentir com a ação dos agentes escolhidos se esse consentimento for consentimento informado. O que eles fazem é da nossa conta, sim. Os bastidores nos interessam, sim.


Infelizmente, assim como a democracia grega desvirtuou-se, o ideal moderno de democracia também. Na contemporaneidade, o que temos é uma democracia fajuta, uma mentira que evocamos quando queremos legitimar a ideologia neoliberal, que nos diz que as coisas são assim mesmo porque assim é melhor para todo mundo, como se o modelo de vida que temos fosse o único possível a seres que tiveram uma história inteira de oportunidades para fazer caminhos diferentes.


É essa mesma ideologia que nos faz confundir interesse individual, sede de poder, com interesse de todos. É essa mesma ideologia que nos faz confundir direito ao voto (na verdade, no Brasil, uma obrigação) com cidadania plena. A mesma ideologia nos faz tomar o artigo XIX da Declaração Universal dos Direitos Humanos ("Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras"), promulgado pela ONU há 60 anos, e hoje tão comemorado, como sendo um fato. O único fato é que ainda estamos lutando por isso, porque ainda nem sabemos o significado de humanidade.


Diversas vezes, sob o discurso do saber, da melhor qualificação ou de uma visão vanguardista, julgamos estar aptos a gerir o bem-comum através da manipulação da opinião pública. E que não leiamos, aqui, "manipulação" sob uma conotação maquiavélica. Porque uns dos escudos dessa ideologia que jaz disfarçada é a mania de perseguição: o inimigo do que procuramos fazer de melhor está em toda parte, e é inimigo esse nosso inimigo porque não nos entende, não nos alcança, não consegue ver além. "São uns ignorantes do projeto", dizemos.


Sim, a sociedade está dividida. Sempre esteve. Não sejamos ingênuos de considerar isso algo ruim, nem de dar aos bois os nomes de "Bem" e "Mal", nem ver os que pensam diferente de nós como inimigos. Seria uma política rasteira, digna dos medíocres. O espaço público existe como lugar de fluxo das idéias e não estamos sabendo usá-lo. O espaço público, hoje, são os meios de comunicação, repletos de simulacros de uma realidade que julgamos lugar da Verdade. Multiplicamos cópias de realidades que criamos em laboratório. Ora, "não existe verdade no singular, longe de toda e qualquer envergadura de discurso. Toda verdade é plural", dizia Carneiro Leão. Como haver construção do bem comum se não há discurso? Se bloqueamos seu fluxo através de uma ditadura que em nada difere da de 37 e da de 64, a não ser pelo fato de que a tortura física e o exílio tornaram-se incomuns – não falemos sobre a tortura moral, sobre o silêncio, sobre a compra das consciências. É uma ditadura filosófica e lingüística, tão violenta quanto, porque torna os homens indignos.


Não sejamos ingênuos de achar que o vivemos hoje é uma democracia. A ágora, hoje diversidade de meios de comunicação, nem existe mais. Temos leis que julgamos justas, mas saibamos diferenciar direito e justiça. Nem digamos que somos iguais perante a Carta, porque não somos. Tenhamos maturidade de enxergar que política não é o que fazemos. E tenhamos também um olhar mais esclarecido para enxergar que quando todos dizem o mesmo e somente são aceitos louvores a tudo o que existe instituído – o sistema político, o comportamento esperado, a fidelidade bestial, o silêncio resignado como sinal de fé em Deus e confiança nos homens – é porque, talvez, seja a hora de uma reflexão ética, que será, quem sabe, capaz de nos dar algumas respostas: quem somos nós e afinal o que estamos fazendo? E não sejamos limitados ao ponto de dizer que filosofia é apenas para desocupados da coisa pública, músicos e poetas.

7 comentários:

Rato (Splinter angorá) disse...

Irmã... estou ficando com medo de você; já é uma Doutora e só falta a convenção dos homens. Bom, lá vai: há tempos venho imaginando aqueles bonecos chamados de fantoches; existem também outros termos, como a "teoria da conspiração" e tudo se encaixa perfeitamente... não sou bom com as palavras, mas de certo existe uma venda nos olhos populares, na sociedade que poderia ser alternativa; vários artistas já nos proporam isso e o que dizemos: e vc ainda leva esse cara pra casa, dizendo que nasceu há 10.000 anos atrás!!! Pescou? bjus ... vc é ótima...

Unknown disse...

Jac...
Que eu sou sua fã n° 1 (nem deixe sua mãe ler) você já sabe, agora, fala sério...você arrasou dessa vez! Você consegue, como ninguém, expor sua opinião de uma maneira que não há como não concordar. Não sei porque o nosso amigo Bonner (aquele mesmo, o William), ainda não te contratou como editora chefe do jornalzinho que ele apresenta.
Brincadeiras à parte...Cada dia tenho mais orgulho de ser sua amiga!
Amo, amo, amo muito você!
Fique com Deus.

Evando Salim disse...

Li e reli seu artigo, claro, objetivo, construtivo e sem entrelinhas. A verdade nua e crua de uma falsa democracia em que vivemos, pois o home comum é sufocado pelo poder. Estamos na mesma trincheira na defesa de idéias e de ideais e, tenha certeza, que só não sucumbimos diante das lideranças fajutas e formadas em laboratórios porque pensamos e falamos. Os que pensam e não falam são coniventes! Meu apreço e parabéns pelo artigo altamente construtivo para a nossa classe e a sociedade como um todo. Evando Salim - Jornal Tribuna Livre

Guilherme Carvalhal disse...

Infelizmente casos de falta de liberdade de expressão vêm se multiplicando. Precisamos de um debate sério sobre a questão, até porque a grande maioria de quem entra com um processo costuma ser gente que tem que ser criticada, principalmente político. E muitos rabos presos acabam por causar censura. Isso inclusive causa medo nas pessoas, o que pode gerar a auto-censura.

Os casos se tornam cada vez mais corriqueiros. A biografia de Roberto carlos foi forte nesse ponto, censurada antes mesmo de ser publicada. Como punir alguém antes mesmo de ela ter dito?

O program Casseta e Planeta foi processado por comparar depoutados com prostitutas. Com o que vemos em nosso país, a "mágoa" dos deputado não se justifica.

É preciso debater seriamente nossas instâncias, para que não venhamos a dar um passo atrás na nossa democracia.

Guilherme Carvalhal

Anônimo disse...

É deprimente como aquilo que temos como sendo alguns de nossos direitos mais basais vêm sendo solenemente ignorado, tripudiados e usado contra nós. De fato, alguns deles, se existiram, foi há tempos tão remotos que o povo já se esqueceu como deveriam ser.

A gestão pública tropeça na ganância e incopetência daqueles que por ela deveriam zelar, que prosseguem zelosamente com seu trabalho, bravamente escoltados por a nossa própria preguiça. A mordaça, embora não seja explicita, ronda as bocas falantes na forma de intimidações diversas, algumas sutis, outras nem tanto. Enquanto isso, o cidadão médio dorme embalado por lendas distantes e rarefeitas de códigos, cartas e declarações que professam uma realidade tão falsa quanto a augusta novela das oito.

Sim, isso tem de ser debatido, tem de ser mostrado. Espero que o assunto ganhe espaço além deste restrito círculo virtual e que a discussão goze se não de vulto, ao menos de certa visibilidade, afinal de contas, interessa a todos.

Lívia Nunes disse...

Professora! Estou com um blog no ar.
relat(ar-te):
http://relatar-te.blogspot.com/

Dá uma olhada.
Beijos

Jacqueline Deolindo disse...

Recebi este comentário por e-mail e achei por bem acrescentar aos demais. Valeu, Eusébio!

Jacqueline,


Antes da mais nada, meus parabéns pelo artigo “No espaço público a verdade não tem dono”. Sinto-me no dever de compartilhar com suas idéias, haja vista vivermos em uma sociedade plural, onde há diversidade do pensamento e não existe uma única VERDADE.



Em uma sociedade democrática o valor da informação é essencial para que o conceito de Cidadania seja real, e se não há informação, ou se esta é manipulada ou até mesmo controlada (ainda bem que em Itaperuna isso não acontece, rsrsrs), nos tornamos vítimas daqueles que detêm o Poder e escravos das “verdades” deles.



Infelizmente grande parte dos detentores do Poder são uns ignorantes que desconhecem o valor do debate, da troca de informação e simplesmente não aceitam uma opinião diferente. O fato de descordamos de determinado posicionamento não nos transforma em aberrações da NÃO VERDADE e não nos faz inimigos uns dos outros. Pelo menos não deveria ser assim, parece-me que o ranço do coronelismo ainda está impregnado na alma de muita gente...



Interessante observar que os detentores do Poder querem se apossar da Imprensa. O termo “calar a imprensa” surge no cenário apenas quando surge um discurso que destoa da vontade dos controladores. Reflitamos juntos! Por que uma das primeiras medidas de um político assim que toma o poder é comprar um jornal, ou buscar uma concessão para rádio e/ou TV? Essa resposta é fácil.



“Calar a imprensa” é uma atitude covarde daqueles que não estão aptos para um debate às claras e que na maioria das vezes tem algo a esconder. A sociedade democrática de fato e de direito, necessita de transparência em todas as esferas do Poder. Faço minhas as suas palavras. “O que eles fazem é da nossa conta, sim. Os bastidores nos interessam, sim”.



Eusébio Dornellas

Escritor, editor do site de webjornalismo www.ofarofa.com e estudante de Jornalismo.